Papos sobre a imaterialidade – Abril Indígena UFPR 2020
Gustavo Caboco fala sobre as relações entre as populações indígenas e os museus e sobre a imaterialidade dos objetos guardados nessas instituições.
Autor do livro “Baaraz Kawau” e artista wapichana, está, em conjunto com outros artistas, em exposição na mostra “Netos de Macunaimi”, em cartaz no Museu de Arte da UFPR (MusA).
Papos sobre a imaterialidade – Abril Indígena UFPR 2020
Por GUSTAVO CABOCO
A convite do MAE-UFPR, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidede Federal do Paraná, em tempos de quarentena e covid-19, programações do Abril Indígena canceladas, ou melhor, suspensas ou adaptadas, gravo-escrevo esta mensagem. O convite é para refletir sobre este momento onde muitos encontram-se em estado de casulo, encasulados, para pensar a vida, mas também os museus e a arte indígena contemporânea. Foi num museu e este já pegou fogo, se desintegrou por quase-inteiro, ou por inteiro (para alguns), que quero narrar o meu relato. Já está em um livro que se chama Baraaz Kawau – O Campo após o fogo, em língua-mãe-wapichana. É através da mãe, e das línguas de várias mães, que chego a esta história ancestral-presente. O museu que anuncio chama-se Museu Nacional e encontra-se na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.
Todos lembram das lamentações do incêndio em setembro de 2018, chamas estas que foram disparadoras para a criação deste livro, que publiquei um ano atrás, em abril de 2019, e que foi lançado dentro de um museu também, o Museu Paranaense. Lá, no Museu Nacional, essas chamas consumiram uma borduna wapichana que tinha mais ou menos a mesma idade do meu tio-avô, seu Casimiro Cadete Wapichana – liderança do Canauanim, mestre da língua nativa. Toda a narrativa do livro se costura a partir da reflexão sobre processos de apagamento e retomada da memória, traçando paralelos entre a história da borduna-incendiada e da biografia do tio Casimiro, e sublinhando ainda a importância da antropologia nisso tudo.
Leio um trecho do livro: “O choque-elétrico que tive no Museu Nacional do Rio de Janeiro foi ver uma peça com a idade muito próxima deste parente. Alguns meses depois o museu se tornou cinzas. Pensei na borduna wapichana em chamas. Lamento muito essa perda histórica. É a queima da primeira instituição científica do país, a maior biblioteca de antropologia da América Latina, o primeiro programa de pós-graduação em antropologia, a borduna wapichana, assim como tantas outras peças importantes para a história do mundo e para a história indígena. A borduna wapichana é uma em cerca de 20 milhões de peças que viraram cinzas. A repatriação é cinza. Cassun, Casimiro, faleceu aos 93 anos. A borduna, com 94 anos, no incêndio de setembro de 2018. Evoco aqui as palavras wapichana “baaraz kawau”, que assinam o nome dessa publicação e significam “o campo após o fogo”. O campo queimado abre a porta para um novo campo, cheio de verde, de caça e oportunidade. Os corpos-memória são vivos, mesmo após a combustão. Não apagarão a nossa memória.”
A experiência material de visitar um museu, viver uma situação específica de imaterialidade-espiritual, uma experiência onde se escuta a vida de um ‘objeto’ e abre-se uma via de acesso à memória gravada na peça, uma experiência etno-estética-ancestral-wapichana-presente, onde vejo, num segundo momento, a materialidade do fogo gerar lágrimas no mundo com um museu se incendiando, mas águas estas que também geram vidas, regam a imaterialidade do espírito e possibilitam um campo fértil, onde aprofundei o diálogo com a borduna e ela fala também com a minha mãe, os meus parentes, e nos leva a outros vários novos encontros – num lugar onde o mundo não acaba, mas o sobrevivente é a memória, que já possui vida-própria. Basta ouvi-la. Nomeio boa parte destas experiências num projeto que chamo de retorno à terra.
Esse passeio, caminhos de retorno e conversas com a imaterialidade do que muitos olham como objetos, artefatos, artesanatos sem vida, ou se reconhecem alguma vida não a levam tão a sério (sejamos francos), e preservam várias dessas peças-vivas em acervos, alguns bem cuidados e outros empoeirados. Tudo isso me leva a dizer: nos deixem trabalhar (também) e não me (nos) incomode.
Já tive a experiência de ouvir arqueólogos e também antropólogos perguntarem e às vezes pressionarem indígenas para que expliquem o que é uma peça, se conhecem sua história, se sabem reproduzir a técnica, se esta tradição se mantém viva ou não, e quando ouve da boca do indígena um “não sei”, logo o profissional do museu se lamenta com uma possível ideia de aculturação. Se ouve alguma novidade, uma explicação, “isso é tal material” ou “é feito de tal jeito”, vão logo coletando em seus caderninhos. E pro indígena devolvem o quê? Um espelho? Talvez um espelho (quando nos vemos no objeto-vivo) ou o acesso a uma peça que nunca foi exposta, o que é bom, mas não paga os nossos boletos. Atente-se quando uso a palavra ‘pressionarem’.
Precisamos de tempo para construir relação com estes objetos-vivos, precisamos de espaço também. Silêncio muitas vezes. Quando penso sobre essa pressa do saber, percebo como se o mundo se definisse apenas entre o saber e o não saber, mas avaliado dentro da lógica do que é dito em tempo instantâneo. Pelo menos quando se trata dos povos indígenas. Não nos efeitos gerados a partir de um encontro, que é o que proponho em meu livro e o que observo que outros parentes propõem também. Este momento de casulo nos ensina que tudo bem os especialistas serem especialistas, tudo bem estes que estão dentro dos museus trabalhando e batendo ponto diariamente continuem fazendo o seu bom serviço. Mas permitam, ou abram-se, para que o especialista-indígena desenvolva a relação com estes acervos também. Não apressem os indígenas a darem respostas instantâneas, ou categorizem cada um, ou cada informação, em uma caixinha quando se ouve uma determinada resposta. Não tenha por garantido todo o trabalho que você já fez até agora: se você já estabeleceu diálogos, ótimo. Continue, mas permita que avaliemos com os nossos olhos.
Muitos de vocês não permitem, se nomeiam os donos do saber. Essas peças falam, mas não é instantâneo. Nenhum ser humano, quando questionado de uma intimidade, estará disposto a falar os seus maiores segredos de prontidão a qualquer um – por que uma peça-viva contaria um segredo rápido? Por isso, viabilizem mais espaços para que indígenas e acervos possam dialogar e propor a partir dos nossos olhos. A imaterialidade dos acervos, onde peças de vários povos coabitam, partilham do mesmo oxigênio, também compartilham seus segredos entre si, aprendem umas com as outras, por isso, esta é uma passagem para um lugar cheio de vida.
Penso que há muito para se olhar dentro das gavetas, dos galpões, dos acervos. E talvez seja necessário que nós façamos isto sem usar as luvas brancas de plástico que aparentemente conservam as peças. Talvez tenhamos que levar algumas dessas peças para passear, pegar sol. Peças que não veem a luz do dia, mas que muito tem a nos contar do mundo das sombras. Não se assustem. Talvez tenhamos que queimar peças, como já vimos em muitas situações de repatriação de objetos, mas não é nem esse o ponto que quero tensionar. As peças paradas, sem acessibilidade, sem diálogo, empoeiradas, em cinzas, já estão queimadas. O desejo de permanecer assim está nas instituições. Vivemos no tempo onde o indígena-pesquisador-artista-conhecedor-sobrevivente pode e deve acessar essas gavetas, esses textos e contextos, trabalhar em conjunto, todos a serviço da memória e da vida.
Hoje, pela manhã, uma parente me questionou sobre como re-acessar memórias. É importante para o parente estar em contato com as vidas nos acervos também. Cantei estas palavras à ouvinte:
“Ir ao lugar. Ir ao lugar. Mesmo que não conheça ninguém. Ir ao lugar, o possível lugar. Qual é o possível lugar onde estão os ossos dos seus parentes. Qual é o possível lugar. Ouvir ouvir ouvir ouvir. Ouvir ouvir ouvir. Cuidar com o que dizer, porque pode ferir, sem perceber. Qual é o possível lugar onde estão os ossos dos teus parentes. Qual interior vai além da escuta? Porque talvez não tenha ninguém pra te contar história alguma, se tiver, escuta tudo antes de gravar qualquer coisa. Grava dentro dentro dentro. Pra ouvir ouvir ouvir, aprender a arte de ouvir. Para vir a ser. Possibilidades do vir a ser. Qual é o possível lugar onde estão os ossos dos seus parentes? Vai lá ouvir. Ouvir a ser. Tem coisas que nem a foto vai ver, nem o texto dizer. Sonhe sonhe sonhe. Onde estão os ossos dos seus parentes? Onde enterraram os ossos dos seus parentes. Aqui? Lá? Nos interiores de quem ou de onde? Ouve ouve ouve ouve ouve. Houve ninguém pra contar história? Sonhe. Como ir ao lugar dos ossos em tempos de corona? Aguardar. Tem que ir ir ir. Colocar o pé pé pé. Ouvir vir vir. Talvez não ouve nada e ninguém sabe de nada. Lidar com os vazis. Os vasos e os vazis. Talvez tenha algo, leve décadas andando,desamarrar de laços e lágrimas. Talvez só suposições. Não sabe de onde veio? Arrancaram isso de ti. Lugar comum. O que devolve? Choros artes pesquisas de artes acadêmicas sonhos velas rezos ciências misturas devaneios ou articulações políticas? Vá onde estão os ossos dos parentes. E aí é muita humildade, força, paciências e pá pra plantar as ciências dos ocorridos.”
E finalizo com essa questão: até onde os museus vão se abrir de fato a uma relação com os povos indígenas? Como estaremos depois deste tempo de casulo em que nos encontramos no momento? Tudo está perdido? Tudo está em chamas? Empoeirado ou queimado? Sejamos lágrimas-férteis. Não apagarão a nossa memória.
Este post faz parte da programação do Abril Indígena UFPR 2020. Acompanhe também:
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Revisão: Diogo Barbosa Maciel