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MAE-UFPR sedia cerimônia de mudança de canoas Avá Guarani em sua Reserva Técnica em Curitiba

Por Dr. Victor Hugo Oliveira Silva, pós-doutorando em Antropologia e Doutor em Sociologia pela UFPR, atualmente desenvolve sua pesquisa junto com os povos Avá Guarani da TI Guasu Guavirá. 

 Nos dias 30 e 31 de outubro, o MAE-UFPR teve a honra de sediar um importante ritual para os Avá Guarani da Terra Indígena Guasu Guavirá. Essa área – localizada no oeste paranaense entre os munícipios Guaíra e Terra Roxa1 – é composta por 14 aldeias e ainda aguarda a devida demarcação, sendo uma conjuntura que se agravará caso a tese do marco temporal, rejeitada pelo STF venha a ser aprovada.  
 
Desde 2018, devido a um projeto de arqueologia compartilhada conduzido pelo IPHAN em conjunto com a Coordenação do Patrimônio Cultural do Estado do Paraná, uma coleção composta por dois remanescentes de canoa e um conjunto de outros artefatos foi resgatada nas proximidades da aldeia Nhemboeté e do sítio Arqueológico de Cidade Real do Guairá. Esses itens vinham sendo, desde então, conservados no Museu Paranaense. O resultado do projeto pode ser conferido em um documentário sobre esse processo feito pela produtora Terra Verde, em parceria com o IPHAN.   

 

Retirada da primeira canoa na tekoha Nhemboeté.  

Esses objetos são entendidos pelos Avá Guarani como um documento, que expressa a ancestralidade da sua presença nesse território. A partir dos ensinamentos dos rezadores, esses artefatos arqueológicos são vistos também como um presente enviado por Nhanderu para auxiliá-los tanto na luta pela demarcação de suas terras, como também naquela contra a discriminação e o preconceito que sofrem diariamente na região.  

A partir de notícias falsas promovidas por grupos associados aos interesses dos grandes ruralistas, aqueles que são contra a presença Guarani os acusam de não serem indígenas, baseados na falsa ideia de que o oeste paranaense era um vazio demográfico. Com as movimentações em torno da Ygá-Miri, nome conferido pelos rezadores a uma das canoas, os Avá Guarani esperam também chamar atenção da opinião pública a respeito da necessidade demarcação de seu território. O atraso nesse processo tem implicado em diferentes atos de violência contra as comunidades Avá Guarani, tal como aponta o Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contros os Avá Guarani do Oeste do Paraná  

Foi devido inclusive a esse contexto de conflito que, após terem sido escavadas pelas equipes de arqueologia que participaram do projeto, as canoas e outros artefatos tiveram de ser enviadas ao Museu Paranaense para que fossem conservadas e protegidas. Havia o receio de que caso ficassem na região, elas pudessem até mesmo sofrer algum tipo de perigo.   

Anciões Avá-Guarani contemplam a canoa após a escavação.  

Apesar de terem sido retiradas de seu território de origem, foi estabelecido, após a cerimônia de batismo de uma das canoas – ocorrida na casa de reza da aldeia Pohã Rendá- um compromisso entre as lideranças Avá Guarani e as instituições envolvidas de que, quando existirem as condições adequadas, a Ygá Miri e os outros artefatos associados irão retornar para seu território de origem. Até lá elas ficarão temporariamente em Curitiba.  

Foi então com o intuito de dar continuidade ao processo de cuidado e pesquisa desses importantes artefatos arqueológicos que, através de uma parceria com o IPHAN e com a CPC-PR, esses bens foram transferidos do Museu Paranaense, onde estavam anteriormente, ao MAE-UFPR, que ficará com a guarda temporária até que eles possam retornar.  

Assim como no início do projeto, os rezadores e lideranças Avá Guarani também participaram do processo de mudança dos bens de um museu para o outro. Como colocam os rezadores, essas canoas são protegidas por seus donos, espíritos ancestrais que no passado foram rezadores e agora atuam no plano sobrenatural cuidando para que esses objetos cumpram sua função de auxiliar o povo Avá-Guarani em sua luta.   

Foi por isso que, para fazer de fato a mudança, se fez necessário organizar uma comitiva de vinte Avá Guarani, provenientes de três aldeias diferentes da TI Guasu Guavirá, para que viessem até Curitiba realizar um processo ritual que durou dois dias.  

No primeiro dia, 30 de outubro, foi feita uma reza com canto e dança, takuapu e mbaracá, dentro do Museu Paranaense para ‘desinstalar’ as canoas e comunicar aos donos sobre a mudança, através da mediação espiritual feita pelos rezadores.  Contando com a presença de representantes das diferentes instituições que participaram do processo, a cerimônia teve como seu ápice o fato de todos terem sido convidados pelo rezador a se juntarem na dança ritual em torno dos objetos, prática esta chamada de jeroky pelos Avá-Guarani.  

Após esse momento os rezadores e as lideranças se pronunciaram, explicando para os presentes a importância dessa coleção para sua luta e também trazendo as informações a respeito dos cuidados necessários de serem realizados no trato com esses objetos.  Tendo em vista a necessidade de fazer com que os espíritos guardiões fiquem satisfeitos será necessário que periodicamente, ao longo de tempo em que a coleção permanecerá em Curitiba,  seja promovida uma visita de um rezador Avá-Guarani até a Reserva Técnica do MAE, de modo que ele possa conduzir o canto cerimonial, apaziguando assim a saudade que esses espíritos sentem de seu território.  

Terminada a cerimônia a equipe do MAE colocou em ação uma atividade que havia dias estava sendo planejada em todos os seus detalhes, o embalo e transporte das peças. Devido ao tamanho de uma das canoas, aproximadamente 6 metros de comprimento, tudo teve que ser feito com muita atenção e cuidado buscando resguardas a integridade e segurança da coleção. As peças foram todas acondicionadas e embaladas após a cerimônia, sendo que na manhã do dia seguinte veio o caminhão destinado a transportá-las até a Reserva Técnica do MAE. Tudo ocorreu dentro do esperado e as peças foram transportadas com segurança.   

Rezadores Fidelino e Libório rezando no MUPA  

No segundo dia, outra cerimônia de reza Avá-Guarani foi celebrada na Reserva Técnica do MAE-UFPR, onde a partir de agora serão mantidas, cuidadas e pesquisadas. A intenção de tal ritual foi apaziguar e satisfazer os donos que, segundo os rezadores, já estavam com saudades de ouvir o canto cerimonial, atraindo assim a devidas bençãos tanto para os Avá-Guarani como para as diferentes equipes e instituições envolvidas no projeto.   

Assim como no dia anterior os rezadores e as lideranças se pronunciaram, demonstrando satisfação com a forma pela qual o projeto vem se desenvolvendo e salientando como esse processo de conservação compartilhada tem sido importante como forma de trazer um foco para a intensa luta que eles vêm desenvolvendo nos últimos anos. Ao final algumas das lideranças concederam entrevistas para equipe de jornalismo da TV UFPR, que tendo acompanhado o evento, produziu uma importante reportagem a ocorrido.  

Rezador Belino conduzindo a cerimônia de chegada na Reserva Técnica do MAE  

Reportagem especial da TV UFPR sobre a vinda das canoas, com as entrevistas.

Na fala abaixo, proferida pela cacique Nazany Martins, liderança da aldeia Nhemboeté, no dia da cerimônia no MUPA, podemos perceber a profundidade e importância que essas canoas têm para o povo  Avá-Guarani:  

Vamos dizer que a canoa é antiga, mas pra nós enquanto indígena essa canoa é um futuro para as nossas novas gerações, para nossas crianças para nossos ancestrais que a gente hoje vê o futuro de nossas crianças, por isso estamos trazendo as crianças também aqui. É por eles que nós estamos aqui, é por eles que nós passamos muitas coisas, muitos de nós, muitos rezadores, já nos deixaram, mas enquanto isso nós, povo indígena Guarani, estamos resistindo. E essa canoa aqui, essa pessoa que tá aqui, essas duas que ele acabou de falar agora, essas duas pessoas que tá aqui hoje, eles vão representar o povo Guarani.”  

A presença das crianças no evento foi enfatizada como crucial, indicando que a canoa não é apenas para os mais velhos, mas desempenha um papel fundamental no legado cultural que está sendo transmitido para as gerações vindouras. O discurso também mencionou a resistência do povo Guarani diante de desafios e perdas, como a partida de rezadores importantes, tornando a canoa uma representação tangível dessa resistência cultural e espiritual. 

Porque estamos passando, estamos numa situação muito difícil, que nem eu falei, nós já perdemos o nosso rezador, que ele batizou a canoa Ygá Miri, o Ângelo. Nós perdemos vários rezadores, e agora estamos com senhor Belino e com seu Libório, mas hoje a gente tem que agradecer a Nhanderu eté, a cada pessoa, a cada um de vocês que estão aqui, eu tenho certeza que cada um recebeu uma coisa no coração, por que eu senti, eu senti, por que eu senti uma alegria muito grande, por que hoje essa canoa pra nós é um documento, eu sempre falo isso, um documento mostrando pra sociedade que o povo Guarani daqui do Paraná, daqui do Brasil, sim, nós somos povos indígenas sim, mantemos a nossa língua, mantemos nossa cultura e mantemos a nossa reza pra onde for que a gente sempre vai estar com nosso canto. Temos sim a nossa reza, nosso costume, nossa cultura. Então hoje, só complementando a fala do senhor Belino, a gente pode até, vamos mexer, mas sem a reza ele não vai continuar, eles precisam da reza. Porque culturalmente a gente tem que rezar uma semana pelo menos pra gente poder mexer, mas como tem todo esse burocrático que vocês dizem, a gente tem que respeitar porque a gente não tem também condição de vir toda semana, todo mês a gente não consegue trazer o nosso chamo’i. ” 

Essa fala proferida pela cacique Nazany revela uma profunda conexão entre o passado, presente e futuro do povo Guarani em relação à canoa Ygá Miri. O discurso destacou a canoa não apenas como um objeto antigo, mas como um símbolo de esperança e continuidade para as futuras gerações, representando um elo entre os ancestrais e o futuro da comunidade. 

Eu quero que vocês saibam, que nessa tarde, mais uma vez essa canoa falou. Falou uma reza antiga, mas sim é um futuro pra nós pra mostrar pra sociedade, que nem eu falei para as novas gerações que estão vindo aqui, que tá aqui, que tá nesse ano também, que tem nova geração no ventre de uma mãe, é pra eles que esse objeto veio, desde que essa canoa foi descoberta, ela não foi descoberta, por que Nhanderueté já sabia o sofrimento que a gente estava passando. Muitos disseram que nós não somos povos indígenas, que não merecemos viver na face da terra. Enquanto isso nossas crianças ali, enquanto isso nossas mulheres ali, enquanto isso nossas anciãs e anciões ali sofrendo. Por isso que Nhanderueté  permitiu pra nós essa canoa, que agora já tá registrado, comprovado que a gente considera o documento oficial do povo Guarani, então minha fala é isso”  

Como podemos acompanhar, essa fala ressaltou a necessidade da prática da reza para a continuidade e manutenção da canoa, sublinhando a dimensão espiritual e cultural intrinsecamente ligada a rituais e práticas tradicionais. Ao mesmo tempo, Nazany mencionou os desafios burocráticos enfrentados ao lidar com a canoa, destacando a necessidade de equilibrar tradições culturais com as realidades modernas, como as demandas burocráticas e logísticas. 

Mulheres Avá-Guarani percutem o Takuapu na Reserva Técnica do Museu de Arqueologia e Etnologia da UFPR (MAE-UFPR) 

A afirmação da identidade Guarani foi um ponto central não somente dos discursos, mas do evento como um todo, reforçando a continuidade de sua luta apesar de toda pressão exercida pelo colonialismo. Resistência essa que vêm fazendo com que eles consigam manter sua língua, modo de ser e rituais, apesar de cinco séculos de contato com o mundo não indígena. Essa ênfase serve como resposta aos estereótipos e à negação da existência dos Guarani como povos indígenas. Em última análise, a fala de Nazany vai além da preservação material da canoa para abordar questões mais amplas de identidade, resistência, espiritualidade e continuidade cultural, destacando a importância de reconhecer e respeitar as práticas e valores culturais dos povos indígenas.  

Nesse momento significativo, a participação do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) em conjunto com o IPHAN, a CPC-PR e as lideranças Avá Guarani foi, para nós, uma fonte de grande alegria e aprendizado. O encontro foi carregado de significados, especialmente considerando a luta dos Avá-Guarani pelo reconhecimento legítimo de sua presença em seu território ancestral. 

Tal dimensão foi reforçada também pelo cacique Gilberto Benites, liderança da aldeia Pohã Rendá que, em uma fala proferida no término da cerimônia afirmou: “Primeiramente, eu quero agradecer a todas as equipes que estão respeitando a nossa cultura, principalmente no processo dessa mudança, porque não é em qualquer momento que a gente pode mexer… tem um espírito que cuida”, lembrou ele fazendo menção aos ensinamentos dos rezadores, que o instruem no exercício da liderança comunitária.  

Para nós, membros da equipe do MAE, a realização dessa cerimônia, uma ação que se desdobrou do Projeto Ygá Miri, é uma honra e, ao mesmo tempo, uma grande responsabilidade. Essa oportunidade nos permitiu aprender com as lideranças e rezadores Avá-Guarani sobre o cuidado de seu patrimônio com base em suas premissas cosmológicas, mas também representou a aplicação prática de princípios decoloniais que desejamos que se façam presentes em nossas exposições, curadorias e pesquisas. Almejamos que esses espaços se tornem cada vez mais locais de escuta e aprendizado, enriquecendo-nos com a sabedoria dos povos originários. 

Rezadores, lideranças e comunidade Avá-Guarani realizando ritual de transferência no MUPA 

 Reforçando esses princípios Gilberto encerrou sua fala dizendo: “A gente vai daqui contente, sabendo como vocês vão cuidar deles ainda aqui. Isso seria a democracia que a gente sempre fala: respeitar a cultura dos outros. Isso é o que está acontecendo! O que os rezadores pediram a gente está fazendo”, complementou frisando a importância do respeito dialógico que vem sendo uma das marcas desse projeto. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Varussa, R. J. (2019). Avá-Guarani e Ruralistas no processo de demarcação da Terra Indígena Guasu Guavirá (Oeste do Paraná, décadas de 2000 e 2010). Anos 90, 26, 1–23. https://doi.org/10.22456/1983-201X.93794  

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF decide que é inconstitucional a lei que proíbe a revista íntima em mulheres. Portal do STF, Brasília, 07 dez. 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514834&ori=1. Acesso em: 07 dez. 2023. 

BRASIL DE FATO. Relatório denuncia violações de direitos humanos aos Guarani do Oeste do Paraná. Brasil de Fato, 11 ago. 2017. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/08/11/relatorio-denuncia-violacoes-de-direitos-humanos-aos-guarani-do-oeste-do-parana/. Acesso em: 07 dez. 2023. 

CANAL DO IPHAN. Ygá Mirî – Resgate emergencial de canoa localizada no sítio arqueológico Ciudad Real del Guayrá. YouTube, 14 dez. 2022. Disponível em: https://youtu.be/OXmbBtIoLoQ?si=On5ftF0HKTK_xK_2 Acesso em: 5 dez. 2023